terça-feira, 29 de setembro de 2015

Que horas ela volta?




Domingo assisti "Que horas ela volta?" e é realmente um belíssimo filme!! Achei a temática e a abordagem original, uma verdadeira lufada de ar fresco na cinematografia nacional. Tinha tudo para ser piegas ou apenas uma crítica social como tantas outras em nosso cinema, mas não, oferece um mergulho sensível nos sentimentos e expõe algo que vai além da relação empregada/patroa, nos faz refletir sobre as relações de poder que estabelecemos no cotidiano e que aceitamos sem olhar criticamente para o que ocorre de fato.

E me emocionei mais ainda por que tocou fundo em lembranças minhas, da minha infância, época em que minha mãe era empregada doméstica e eu era o filho da empregada e não entendia por que em dia de festa infantil eu não podia ficar para a festa, passava o dia brincando com as crianças enquanto os adultos preparavam a festa, chegavam os doces, os salgados, bexigas eram enchidas... e dava o fim da tarde eu tinha que ir embora e não poderia voltar (minha mãe mentia dizendo que me levaria para casa para me arrumar e depois voltar, mas nunca voltava).

Eu tentava me enturmar com o filho da patroa, nossa diferença de idade era pequena e eu ficava deslumbrado com a quantidade enorme de brinquedos que ele tinha e com um porão que havia na casa onde ele e seus amigos montaram um clubinho. Eu pedia para brincar com eles mas eles não deixavam, me passavam várias tarefas para fazer dizendo que se eu fizesse eles deixavam eu brincar também, fazia tudo e nunca cumpriam a promessa, o máximo que consegui foi botar os pés dentro do porão e sair logo em seguida. Passava mais tempo brincando sozinho ou preferia ficar em casa mesmo, também sozinho, do que ficar passando por aquilo. Era inútil reclamar para minha mãe, eu tinha que entender que não era uma criança como eles.

Nem vou falar das coisas que minha mãe passava, algumas só fiquei sabendo muitos anos depois por amigos da família. Um exemplo foi certa vez que minha mãe aproveitou o horário de almoço para correr no supermercado e fazer compras. Ela deixou suas sacolas no quartinho dela e quando deu a hora de ir embora a patroa a chamou na frente de outras funcionárias dela e disse que andava sendo roubada por elas e achava que minha mãe poderia estar roubando coisas também. Ela fez minha mãe esvaziar todas as sacolas e mostrar todos os produtos. Como minha mãe não roubou nada, ela a dispensou e depois disse que fazia isso para suas funcionárias não serem insolentes e aprenderem a respeitá-la.

Havia uma vizinha que tinha um filho da minha idade e muitas vezes para eu não ficar sozinho minha mãe deixava que eu fosse brincar com ele. Nós tínhamos cerca de 5 anos, ele era um menino muito mimado e que tinha muitos brinquedos. Eu ficava fascinado. Era um menino muito atentado, uma vez fez eu ir com ele na loja da família que ficava perto e pegou dois jogos e deu um para mim. Mais tarde a mãe ao ver o que tinha acontecido deu o maior esporro nele e eu fiquei apavorado e me sentindo culpado. Ela viu que eu não tinha culpa, me acalmou e me deu o jogo de presente, mas fez o filho devolver o dele. Certa vez fomos a um rancho, minha mãe foi para faxinar e eu fiquei com o menino e a mãe. Ela nos ensinou a pescar e começamos a pescaria, eu fui pegando um atrás do outro e o filho dela nada, ele era agressivo com a vara e espantava os peixes. Por fim, eu pesquei nove peixes e ele um, que tinha voado e caído numa piscina velha e só encontramos horas depois. Ao fim do dia, contei para minha mãe todo feliz do meu sucesso com os peixes e disse que era para nosso jantar. Minha mãe disse que eu não ia levar os peixes, que não eram nossos. Eu comecei a chorar e a dizer que eu que tinha pescado, a mãe do garoto disse que eu poderia levar, mas minha mãe negou e foi firme, me disse em segredo que só diziam aquilo por educação. Fui embora chorando e sem entender por que tinha que ser assim.

E essa foi uma das coisas mais duras a se entender, por que eu não poderia aceitar algo que me ofereciam, que só faziam por educação e quando eu estava com a minha família, entre os meus, eu deveria sempre aceitar, mesmo que não quisesse, para não fazer desfeita. As regras de boas condutas eram (e confesso que ainda são) muito estranhas para minha cabeça...

É engraçado ver comentários negativos sobre o filme da Muylaert, que é um exagero, que não é assim, que quer demonizar as patroas, que é uma crítica social chata... Curiosamente, quem diz isso sempre foi filho de patroa e normalmente filhos de patroa não conseguem ver muito além dos seus próprios umbigos. O filme não é somente sobre um problema social brasileiro, ele vai muito além. Se por um lado me despertou essas lembranças e essa conexão por eu já ter vivido algo semelhante, por outro me fez questionar como eu me relaciono com os outros, quais os valores que eu cultivo no meu dia-a-dia. É chocante ver um homem sentado pedindo para outro fazer tudo por ele, até abrir uma lata de refrigerante, mas quantas vezes eu mesmo não arredei minha bunda do sofá e transferi para outros funções que eram minha obrigação de realizar? Quantas louças deixo sujas e que outros lavam por mim e nem mesmo um obrigado eu dou? 

Comecei recentemente a estudar na Unicamp, em Campinas, e achei assustador o abismo que existe entre os funcionários da limpeza e os alunos. São duas realidades que não se cruzam, espíritos desencarnados, uma verdadeira Silent Hill. Quando eu cumprimento um deles os olhos se arregalam em espanto até me responder, dá para ver pela expressão que está pensando: "Como assim ele está falando comigo??". E é assim na Unicamp, era assim na UFSCar, é assim em Passos, em Guaxupé, em todos os lugares onde já estive. Por isso acho louvável uma produção como a de "Que horas ela volta?", afinal o buraco é mais embaixo e o problema não é apenas no ambiente doméstico, nossa sociedade, nossa democracia, é formada por pessoas que desde que se entendem por gente devem entender "qual o seu lugar" e a maioria deve abaixar a cabeça enquanto a minoria desfila em seus trajes de soberba.


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